As Organizações Religiosas e a União Homoafetiva
Artigo do Dr. Caramuru Afonso Francisco*
O Supremo Tribunal Federal, no dia 5 de maio de 2011, julgou procedentes duas ações, a ação direta de inconstitucionalidade nº 4277, proposta pela Procuradoria Geral da República e a arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 132, proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, o sr. Sérgio Cabral, considerando como “entidade familiar” a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Tal decisão, que representa mais um distanciamento do direito de família brasileiro ao modelo judaico-cristão que forjou o surgimento deste direito em nosso ordenamento jurídico, traz, naturalmente, alguns questionamentos a respeito do comportamento que devem ter as organizações religiosas diante de tais uniões, uma vez que é sabido que, na sua esmagadora maioria, as religiões (cristianismo, islamismo, judaísmo, entre outras) não aceitam esta forma de união, já que contrária à própria natureza humana.
É importante frisar, desde já, que o que fez o Supremo Tribunal Federal foi atribuir a estas uniões, chamadas de “homoafetivas”, o mesmo “status” das uniões estáveis previstas no artigo 226, § 3º da Constituição da República. Neste dispositivo constitucional, é claríssimo que as uniões estáveis são reconhecidas como “entidades familiares” “para fins de proteção do Estado”.
Trata-se, portanto, de um reconhecimento que se faz única e exclusivamente para que se tenha “proteção do Estado”, o que já significa que tal reconhecimento, de forma alguma, pode avançar sobre áreas alheias ao Estado, entre as quais se encontra a atividade religiosa.
Como é sabido, o Estado brasileiro é laico, ou seja, não tem uma religião oficial, não podendo professar qualquer credo, como se vê, claramente, do disposto no artigo 19, inciso I da Constituição da República.
Assim sendo, o reconhecimento da união homoafetiva não pode, em absoluto, vincular as organizações religiosas, com as quais o Estado não pode estabelecer relações de dependência ou aliança.
Como se não bastasse isso, o Código Civil é claríssimo ao dizer que são livres a criação, organização, estruturação interna e funcionamento das organizações religiosas (artigo 44, § 1º CC), a indicar que não pode o Estado intervir nos postulados e normas internos das organizações religiosas.
Desta maneira, o fato de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a qualidade de “entidade familiar” às uniões homoafetivas não atinge os estatutos sociais das organizações religiosas e suas normas internas que condenam tais uniões e impedem que seus membros possam mantê-las.
Continua perfeitamente possível e não representa qualquer ilegalidade a previsão da repulsa ao homossexualismo e às uniões homoafetivas nos estatutos sociais e demais normas internas das organizações religiosas, sendo, também, perfeitamente cabível a exclusão de sua membresia de todos quantos adotarem tais maneiras de viver.
Diríamos, até, que se impõe, ante o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal, a inclusão de tais vedações nos estatutos sociais e normas internas que ainda não os contêm, vez que, em caso de silêncio, aí sim se configuraria uma ilegalidade a exclusão de membros que adotassem tais práticas sem que houvesse prévia disposição normativa.
A própria argumentação dos autores das duas ações julgadas procedentes pelo Supremo Tribunal Federal leva a esta conclusão.
Com efeito, em ambas as ações, procurou-se mostrar ao Supremo Tribunal Federal que se impunha o reconhecimento das uniões homoafetivas em nome de alguns princípios constitucionais, entre os quais o da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da segurança jurídica.
Ora, segundo os autores das duas ações, a Constituição da República adota como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, segundo o qual deveria haver respeito e consideração a todos os homens.
Se assim é, não pode o Estado impor a seus cidadãos a obrigatoriedade de aceitar, sem que para tanto haja desrespeito e desconsideração, uniões que sua fé entenda serem abomináveis e desagradáveis a Deus.
Também se disse que o reconhecimento das uniões homoafetivas era uma imposição do princípio da liberdade, pois todos devem ter o direito de escolher e de manifestar com quem querem constituir família, independentemente do sexo da pessoa amada.
Se assim é, não pode o Estado, também, impedir que as pessoas entendam que somente se pode constituir família com pessoa do sexo oposto e mediante o casamento, como creem a esmagadora maioria das religiões, de forma que não podem impedir que, em suas organizações religiosas, os cidadãos brasileiros estabeleçam que tipos de família podem participar de suas comunidades, à luz de suas crenças.
A propósito, esta liberdade das pessoas religiosas foi expressamente reconhecida na sustentação oral do advogado Luís Roberto Barroso, que representou, no julgamento do Supremo Tribunal Federal, o Governador do Estado do Reio de Janeiro, o sr. Sérgio Cabral.
Também se disse que o reconhecimento de uniões homoafetivas era necessário por causa do princípio da igualdade, pois todos devem ser tratados de igual maneira, independentemente de orientação sexual.
Se assim é, o Estado também não pode impedir que as pessoas religiosas tenham o mesmo direito de dizer que tipo de família podem admitir em suas comunidades, em suas organizações, visto que são tão iguais quanto os homossexuais.
Também se disse que o reconhecimento das uniões homoafetivas era um corolário do princípio da segurança jurídica, já que se devia dar aos homossexuais a garantia de que poderiam ter os mesmos direitos dos heterossexuais em termos de direito de família, não vivendo uma insegurança quanto ao seu patrimônio jurídico uma vez inseridos neste tipo de união.
Se assim é, as organizações religiosas também têm o direito de ver resguardadas a sua independência frente ao Estado, não podendo permitir que suas crenças e sua cosmovisão sejam afetadas por um Estado que não pode se imiscuir em assuntos religiosos.
Vemos, pois, que toda a fundamentação do reconhecimento do Supremo Tribunal Federal impõe, de modo indelével, a total inaplicabilidade de tal reconhecimento à estruturação interna e ao funcionamento das organizações religiosas em nosso país.
Cumpre, por fim, observar que o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal não equiparou as uniões homoafetivas ao casamento, mas, sim, às uniões estáveis entre homem e mulher que, pela própria disposição do artigo 226, § 3º da Constituição da República, estão em nível inferior ao casamento.
Deste modo, também, não tem qualquer fundamento a ideia de que, com o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal, as organizações religiosas tenham qualquer obrigação de realização de cerimônias de “casamento entre pessoas do mesmo sexo”, vez que nem sequer houve reconhecimento de que possa haver casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que continua sendo vedado pelo nosso ordenamento jurídico.
É oportuno observar, aliás, que o ministro Ricardo Lewandowski, embora tenha votado a favor da união estável homoafetiva, fez questão de ressaltar que tal reconhecimento não importava em possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, algo que não é previsto no ordenamento jurídico brasileiro.
Se não existe, pelo menos por ora, “casamento homoafetivo”, tem-se como impossível usar-se o argumento de que as organizações religiosas sejam obrigadas a qualquer tipo de celebração de tal espécie de união.
Vemos, pois, em conclusão, que referido julgamento do Supremo Tribunal Federal é totalmente inaplicável à vida interna das organizações religiosas.
* Doutor em Direito Civil e bacharel em Filosofia pela USP.
Divulgação: www.jorgenilson.com
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